“Terminado
seu mandato na Presidência da República, Sarney resolveu candidatar-se a
Senador. O PMDB — Partido do Movimento Democrático Brasileiro —
negou-lhe a legenda no Maranhão. Candidatou-se pelo Amapá. Houve
impugnações fundadas em questão de domicílio, e o caso acabou no Supremo
Tribunal Federal.
Naquele
momento, não sei por que, a Suprema Corte estava em meio recesso, e o
Ministro Celso de Mello, meu ex-secretário na Consultoria Geral da
República, me telefonou:
—
O processo do Presidente será distribuído amanhã. Em Brasília, somente
estão por aqui dois ministros: o Marco Aurélio de Mello e eu. Tenho
receio de que caia com ele, primo do Presidente Collor. Não sei como vai
considerar a questão.
—
O Presidente tem muita fé em Deus. Tudo vai sair bem, mesmo porque a
tese jurídica da defesa do Sarney está absolutamente correta.
Celso
de Mello concordou plenamente com a observação, acrescentando ser
indiscutível a matéria de fato, isto é, a transferência do domicílio
eleitoral no prazo da lei.
O
advogado de Sarney era o Dr. José Guilherme Vilela, ótimo profissional.
Fez excelente trabalho e demonstrou a simplicidade da questão: Sarney
havia transferido seu domicílio eleitoral no prazo da lei. Simples. O
que há para discutir? É público e notório que ele é do Maranhão! Ora,
também era público e notório que ele morava em Brasília, onde exercera o
cargo de Senador e, nos últimos cinco anos, o de Presidente da
República. Desde a faculdade de Direito, a gente aprende que não se pode
confundir o domicílio civil com o domicílio eleitoral. E a Constituição
de 88, ainda grande desconhecida (como até hoje), não estabelecia
nenhum prazo para mudança de domicílio.
O
sistema de sorteio do Supremo fez o processo cair com o Ministro Marco
Aurélio, que, no mesmo dia, concedeu medida liminar, mantendo a
candidatura de Sarney pelo Amapá.
Veio
o dia do julgamento do mérito pelo plenário. Sarney ganhou, mas o
último a votar foi o Ministro Celso de Mello, que votou pela cassação da
candidatura do Sarney.
Deus
do céu! O que deu no garoto? Estava preocupado com a distribuição do
processo para a apreciação da liminar, afirmando que a concederia em
favor da tese de Sarney, e, agora, no mérito, vota contra e fica vencido
no plenário. O que aconteceu? Não teve sequer a gentileza, ou
habilidade, de dar-se por impedido. Votou contra o Presidente que o
nomeara, depois de ter demonstrado grande preocupação com a hipótese de
Marco Aurélio ser o relator.
Apressou-se ele próprio a me telefonar, explicando:
— Doutor Saulo, o senhor deve ter estranhado o meu voto no caso do Presidente.
— Claro! O que deu em você?
— É que a Folha de S. Paulo,
na véspera da votação, noticiou a afirmação de que o Presidente Sarney
tinha os votos certos dos ministros que enumerou e citou meu nome como
um deles. Quando chegou minha vez de votar, o Presidente já estava
vitorioso pelo número de votos a seu favor. Não precisava mais do meu.
Votei contra para desmentir a Folha de S. Paulo. Mas fique tranqüilo. Se meu voto fosse decisivo, eu teria votado a favor do Presidente.
Não acreditei no que estava ouvindo. Recusei-me a engolir e perguntei:
—
Espere um pouco. Deixe-me ver se compreendi bem. Você votou contra o
Sarney porque a Folha de S. Paulo noticiou que você votaria a favor?
— Sim.
— E se o Sarney já não houvesse ganhado, quando chegou sua vez de votar, você, nesse caso, votaria a favor dele?
— Exatamente. O senhor entendeu?
— Entendi. Entendi que você é um juiz de merda! Bati o telefone e nunca mais falei com ele.”
(Saulo Ramos, “Código da Vida”, Ed. Planeta, 8ª reimpressão, 2007)
Saulo Ramos (1929-2013) foi, dentre outras coisas, ministro da Justiça no governo José Sarney, o que convenhamos, não deve ser motivo de mérito ou orgulho para ninguém. Foi ele o responsável pela indicação de Celso de Mello para o STF.
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